
▴ Nomes dos meses no Menologium Rusticum Colotianum, calendário romano produzido no século I d.C.
É
bem conveniente que a primeira postagem de um blog chamado "Clepsidra"
discuta o tempo. Uma clepsidra, caso você não saiba, é uma espécie de
relógio que usa um fluxo de água como referência para contar a passagem
dos minutos e das horas. Diversos povos desenvolveram essa tecnologia,
mas o termo "clepsidra" em si é de origem grega. Apesar disso tudo, se
não me falha a memória, creio ter pensado na temática desta primeira
postagem alguns dias antes de ter bolado o nome do blog. O tema surgiu
numa conversa com a família da minha namorada, quando a questão "de onde
vieram os nomes dos nossos meses?" foi dirigida a mim. É bem fácil
encontrar a resposta pra essa pergunta. Por causa disso, neste texto,
vamos complicar as coisas e entender por que que, pra início de
conversa, os meses têm nomes.
Eu
sei que uma pergunta desse tipo pode soar besta. Os seres humanos têm
por hábito nomear tudo o que vêem pela frente, de forma que parece
perfeitamente normal que os meses tenham nomes. Contudo, seguindo uma
longa tradição filosófica que remonta a Aristóteles, eu acredito
firmemente que o melhor meio para a construção do saber é o
estranhamento das coisas que nos parecem óbvias. Lidamos com os meses o
tempo todo, de forma que nem paramos pra pensar qual a lógica que existe
por trás dos seus nomes. Na verdade, no caso específico do nosso
calendário – chamado de gregoriano –, não existe lógica nenhuma. Mas vamos por partes.
Todas as culturas que criaram calendários fizeram questão de dividir o ano em unidades menores. Essa divisão foi feita de várias maneiras, seguindo os mais variados sistemas. Podemos dizer que essas divisões são os meses de cada calendário, apesar de nem todas as línguas terem um termo equivalente para a nossa palavra "mês". As comunidades adeptas do islamismo dividem o seu ano de acordo com o ciclo das fases da Lua. Cada vez que a Lua crescente aparece no céu, um novo mês se inicia para os muçulmanos. Trata-se de um exemplo de calendário lunar, uma vez que é regido pelos ciclos do nosso satélite natural.
O nosso calendário gregoriano, por sua vez, é um calendário solar, pois é baseado no tempo que a Terra leva para completar sua translação, ou seja, sua volta ao redor do Sol. Calendários solares costumam ter seus meses divididos de maneira mais ou menos arbitrária. O nosso, por exemplo, tem doze meses de 28, 29, 30 ou 31 dias. Por outro lado, o calendário utilizado pela Igreja Católica Copta tem treze meses, sendo doze com 30 dias e um com 5 ou 6 dias. O calendário do discordianismo, uma religião criada na década de 1960, é dividido em cinco grandes meses de 73 dias. E, para além dos calendários lunares e solares, há ainda os lunissolares, que tomam como referência tanto o Sol quanto a Lua.
Espero que tenha ficado claro como o significado daquilo que chamamos de "mês" pode variar muito de cultura para cultura. Cada uma delas constrói o seu calendário se guiando por referenciais diferentes. A questão pode se complexificar ainda mais se colocarmos em jogo algumas divisões informais do ano: na maioria dos países que adotaram o calendário gregoriano, existe o hábito de agrupar os meses em conjuntos de bimestres, trimestres e semestres. Outra maneira de complicar o assunto é considerar as especificidades dos calendários que se organizam em diferentes ciclos independentes e concomitantes. O calendário do povo maia, desenvolvido na América Central, é assim. Você pode encontrar longas páginas na internet dedicadas a explicar o funcionamento desse confuso calendário. Para nossos humildes propósitos aqui, basta nos atermos ao fato facilmente atestável de que todos os calendários dividem seus anos em meses.
E aqui quero desmentir algo que eu disse ainda no segundo parágrafo
deste texto. Eu disse lá que nos parece muito trivial que os meses
tenham nomes, já que tudo o que o ser humano toca recebe um nome. É
preciso, porém, relativizar essa informação. Apesar da habilidade de
nomeação ser comum a todos os povos que fazem uso de alguma linguagem, o
conjunto de coisas que são nomeadas varia de sociedade para sociedade.
Por exemplo, os gregos antigos não tinham uma palavra única para se
referir a nossa cor azul. Os japoneses, por sua vez, têm um nome
específico para o efeito que a luz adquire quando atravessa a folhagem
das árvores. A explicação pra esse fenômeno é que nós só criamos nomes
quando eles podem nos ser úteis no coitidiano – e isso varia de contexto
para contexto. Então, por mais estranho que pareça, nem todos os povos
nomeiam os seus meses. O calendário do povo baulé, na Costa do Marfim,
utiliza meses que não possuem nomes. Ainda mais estranhamente, os meses
dos baulés não seguem uma sequência específica ao longo do ano.
Algumas sociedades, de maneira bem pragmática, desenvolveram
calendários completos em que os meses são identificados simplesmente
pela sua posição no ano. No Vietnã contemporâneo, o primeiro mês do ano é
chamado Tháng Một. Em vietnamita, tháng significa “mês”, enquanto một
significa “um”; o “janeiro” dos vietnameses é, portanto, literalmente o
“Mês Um”. Esse padrão se repete para todos os outros onze meses. Alguns
dos meses do calendário gregoriano foram nomeados dessa maneira. Nosso
calendário tem sua origem no primeiro sistema de datação do tempo
desenvolvido pelos romanos, no século VIII a.C., conforme narram os
mitos. Tratava-se de um calendário de apenas dez meses, já que os outros dois só foram inventados bem mais tarde. Os meses de
número sete ao número dez eram nomeados, respectivamente: september, october, november e december.
É por isso que o nosso calendário tem a estranha característica de
chamar setembro o mês de número nove, e novembro o mês de número onze.
Há casos de calendários que possuem dois meses compartilhando o
mesmo nome. No começo da Idade Média, os povos da Grã-Bretanha,
falantes do inglês antigo, chamavam de Giuli tanto o primeiro
quanto o último mês do ano. Um fenômeno mais ou menos parecido pode ser
observado no calendário dos hebreus. Trata-se de um calendário
lunissolar de doze meses, mas que, de tempos em tempos, recebe um mês a
mais para que o ciclo lunar dos meses se sincronize ao ciclo solar dos
anos. Dessa forma, o mês de Adar é repetido: Adar Rishon ("Primeiro Adar") e Adar Sheni ("Segundo
Adar"). E a mesmíssima coisa acontece no calendário chinês. Já no Egito
antigo, em cerca de 1300 a.C., a sincronização era feita com o
acréscimo de 5 ou 6 dias aos doze meses regulares. O nome do conjunto
desses dias extras era auto-explicativo: "cinco dias por sobre o ano".
Frequentemente, os meses fazem referência a aspectos
religiosos. Isso é muito importante, pois alguns historiadores e
antropólogos defendem que os calendários foram originalmente criados
para manter um controle sobre os dias destinados a ritos sagrados. Em
algumas comunidades sem escrita na África, há algumas pessoas que são
encarregadas de memorizar as datas das festas e dos dias santos. Para
alguns povos, como a Europa cristã da Idade Média, o tempo em si é um
domínio sagrado do divino. Foi por isso que muitos europeus se
revoltaram quando o papa Gregório XIII, em 1582, pulou dez dias do
calendário a fim de sincronizá-lo à translação da Terra. Como poderia um
simples homem interferir na organização do tempo, que deveria ser uma
prerrogativa somente de Deus? Se não é possível afirmar que os
calendários foram inventados originalmente como instrumentos religiosos,
fato é que a marca da religião sobrevive nos nomes dos meses.
No nosso calendário, o mês de janeiro faz referência ao deus romano
Jano, que tem um rosto na frente e outro atrás da cabeça: ele olha tanto
para o passado quanto para o futuro. O nome fevereiro vem de Februa,
nome de um ritual de purificação que compunha a Lupercália, uma das
principais festas de Roma. Março vem do deus romano Marte, responsável
pela guerra. Existe uma hipótese que atribui o nome do mês de abril à
Afrodite, deusa grega do amor. Maio também veio de uma deusa grega:
Maia, ligada à fertilidade. Por fim, o mês de junho pegou o seu nome de
Juno, uma das principais divindades do panteão romano. Todos esses
exemplos tirados do calendário gregoriano evidenciam meses que apontam
ou para nomes de deuses ou para nomes de rituais.
Alguns calendários usam os seus meses como instrumentos de
ensino, a fim de educar as pessoas nos princípios religiosos. Os
dezenove meses do calendário Bahá'í, religião monoteísta do Irã, fazem
referência aos atributos de Deus. Por exemplo, jalál significa a majestade e 'Ilm
significa o conhecimento divino. Alguns outros calendários fazem
referências a deveres e proibições que devem ser atendidas. No mês
islâmico de Dhū al-Qa‘dah (algo como "o do lugar de se assentar"), os muçulmanos têm a obrigação de evitar a guerra. Semelhantes a estes calendários educativos estão alguns ligados ao esoterismo. O dreamspell, inventado nos Estados Unidos da década de 1980, nomeia os seus treze meses a partir dos treze tons galácticos: magnetic ("magnético"), self-existing ("auto-existente"), resonant ("resonante")
etc. Agora, se você me perguntar o que cargas d'água são os treze tons
galácticos, ficarei lhe devendo uma resposta.
Alguns desses calendários de conotação religiosa nomeiam seus meses a
partir de figuras notáveis por sua piedade. Isso é particularmente comum
em calendários cristãos, os quais se reportam à tradição dos santos.
Antes de adotar o gregoriano, usava-se na Hungria um calendário desse
tipo. O quarto mês do ano era Szent György hava, o "mês de São Jorge", enquanto o nono era o Szent Mihály hava,
o "mês de São Miguel". Alguns calendários dedicados a figuras
históricas, porém, se caracterizam pelo seu aspecto laico. Auguste
Comte, o fundador da filosofia do positivismo, propôs no século XIX um
calendário de treze meses dedicado a honrar a memória dos grandes
representantes da humanidade: Dante, Homero, Arquimedes, Shakespeare
etc. Podemos mencionar também os meses nomeados a partir de figuras
políticas. Vamos mais uma vez tirar exemplos do nosso calendário
gregoriano. O mês de julho ganhou o seu nome em 44 a.C., como uma
homenagem do senado romano ao general Júlio César. Em 8 a.C., o primeiro
imperador de Roma, Otaviano Augusto, quis seguir o exemplo e se
auto-homenageou, trocando o nome do oitavo mês do ano para agosto.
Um dos gêneros mais comuns de calendários são aqueles que nomeiam os
seus meses a partir de fenômenos da natureza. Os exemplos são
inesgotáveis, mas podemos mencionar alguns aqui. Uma outra hipótese para
a etimologia do nosso mês de abril é a sua origem no verbo latino aperire,
que significa "abrir", uma vez que se situaria no início da primavera do hemisfério norte. O calendário celta usado na Gália do século II
a.C., apesar de só ter chegado a nós em fragmentos, possuía meses como
"mês do frio", "mês dos veados" e "mês do verão". Os ojibwes, indígenas
da América do Norte, têm o ano repleto de luas, baseando-se nos vegetais que viscejam em cada época do ano: "lua das flores", "lua
dos morangos", "lua do milho" etc. Alguns calendários associam os ciclos
da natureza aos trabalhos que devem ser realizados em cada mês.
Assim, o povo zulu, na África do Sul, inicia o seu ano no mês de uMasingana, "procura", incentivando a busca por vegetais a serem coletados.
Dentre
os calendários que se inspiram na natureza para nomear os seus meses,
destaca-se um gênero específico. Falo daqueles que usam os fenômenos
celestes como referenciais. No Bangladesh, quase todos os meses dos
povos falantes do bengalês recebem os seus nomes a partir dessa lógica.
O mês de Ashvin é uma referência a Ashivini, a primeira estrela que aparece no céu noturno por essa época. O mês de Boishakh se deve a aproximação observável entre o sol e a estrela Bishakha.
Na Tailândia, os nomes dos doze meses têm suas origens nos doze signos do zodíaco. Um
outro exemplo interessante é o calendário dariano, desenvolvido para a
contagem do tempo no planeta Marte. Os seus vinte e quatro meses
são nomeados a partir dos signos do zodíaco em latim e em sânscrito.
Assim, o ano em Marte se inicia em Sagittarius e termina em Vrishika – o termo em sânscrito para a constelação de escorpião.
É impossível falar de calendários sem falar da Revolução
Francesa. Na verdade, é impossível falar sobre qualquer coisa sem
mencionar esse evento que fundou o mundo contemporâneo. No ano de 1793,
os revolucionários que haviam deposto a monarquia e fundado uma
república em seu lugar, passaram a usar um novo calendário em
substituição ao nosso gregoriano. O ano da proclamação da república,
1792, passou a ser o ano 1 dos franceses. Os meses foram igualados: cada
um teria apenas 30 dias. As semanas, por sua vez, passariam a ter 10
dias. Para além dessas mudanças, os meses também tiveram seus nomes
alterados. A partir de então, todos os doze fariam referência a aspectos da paisagem natural francesa. O primeiro mês do ano, iniciado no equinócio do outono, se
chamava Vendémiaire, significando "colheita de uvas". O último mês do inverno era o Ventôse, "ventoso". Logo depois, a primavera se iniciava com o Germinal ("germinação"), e o verão se fechava com o Frutidor ("frutuoso").
Houve três razões fundamentais que levaram os franceses a
abolir o tradicional calendário gregoriano e a adotar o novíssimo
calendário republicano. Em primeiro lugar, havia um desejo de marcar a Revolução como um momento de ruptura em relação ao período que a havia antecedido. O Antigo Regime, marcado pelo domínio da Igreja e dos nobres, devia ser esquecido em prol de um novo recomeço. Para os revolucionários, o ano 1 da república marcava o início de uma nova era, marcada pelo poder do povo. A segunda razão era que o calendário deveria ser expurgado de suas características religiosas e supostamente irracionais. O calendário gregoriano, como vimos até aqui, é composto por meses desiguais, repleto de referências a divindades. Até mesmo a semana de sete dias é uma referência cristã. Além disso, tratava-se, na época, de um calendário criado e mantido pela Igreja Católica. O calendário republicano, por outro lado, buscou na precisão matemática e nas referências à natureza da França um caminho para uma forma mais laica e nacionalista de se contar o tempo.
A terceira razão para se adotar o calendário republicano em 1792 era a certeza de que ele serviria como memorial da Revolução para as gerações futuras. Apesar disso, ele durou apenas doze anos – se desconsiderarmos algumas tentativas de retomá-lo ao longo do século XIX. De qualquer forma, mesmo com sua curta duração, a instauração do calendário revolucionário nos permite compreender o quão artificial é a forma como contamos o tempo. Jacques Le Goff – que é quase um beato no campo da historiografia contemporânea – notou que o tempo do calendário, apesar de ser baseado em ciclos da natureza, é uma criação completamente social. O estabelecimento das semanas, dos meses e dos anos é uma importante forma pela qual os seres humanos reunidos em sociedade afirmam o seu domínio sobre o universo, classificando-o, dividindo-o e dando-lhe sentido. Afinal, o tempo da natureza, por si mesmo, não tem formas ou divisões. A forma como esse domínio é realizado vai depender das diferentes relações de poder estabelecidas dentro de uma sociedade. É por essa razão que, na França do século XVIII, o declínio da Igreja e da nobreza implicou numa mudança na forma de se contar o tempo.
Por que os meses têm nomes, então? Por diversas razões: para marcar as datas religiosas, para honrar os deuses, para se lembrar de grandes personagens históricos, para indicar trabalhos a serem feitos, para descrever a paisagem natural etc. Porém, sempre os nomes dos meses estarão em profunda interação com as relações sociais características de cada povo. Para que serve encher os meses de deuses e feriados sagrados, senão para estabelecer qual é a religião oficial daquela comunidade? Ou então para que serve indicar nos meses as características naturais e as tarefas próprias de cada época, senão para advertir ao povo de que o trabalho não deve nunca ser deixado de lado? Ou então, ainda, qual é o propósito das reformas de calendários, senão indicar uma insatisfação a uma dada ordem social?
O fato é, como o nosos próprio calendário demonstra, que essas diferentes motivações se misturam e se sobrepõem ao longo do tempo. É nesse sentido que eu afirmei, no início dessa postagem, que não existe, no calendário gregoriano, nenhuma lógica nos nomes dos meses. Ele é um compósito que se formou ao longo do tempo, reunindo em si elementos que foram criados em diferentes épocas com diversos intuitos. Um faz referência às estações (abril), alguns lembram deveres religiosos (janeiro, fevereiro, março, maio, junho e, talvez, abril), outros são homenagens a figuras políticas (julho e agosto) e alguns outros indicam apenas a sua posição no ano (setembro, outubro, novembro e dezembro). A perpetuação do calendário gregoriano ao longo dos séculos se deve à força da tradição cristã e greco-romana no mundo ocidental. Pensando por esse lado, ele faz mais sentido – e também acaba nos dizendo muito sobre a nossa própria sociedade.
Para ler mais:
❖ O capítulo "Calendário" do livro "História e memória", de Jacques Le Goff;
❖ O livro "Time and the French Revolution", de Matthew Shaw.
Muito interessante! Curioso pensar que existem tantas razões diferentes e que elas acabaram se misturando para nós ao longo dos anos... Parabéns pela ótima publicação! 👏🏻👏🏻❤️
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